03/05/2012
O Oceano na Place de Ternes (by Evandro Barreto)
Até hoje, não conheci ninguém que tenha viajado a Paris para visitar principalmente a Place de Ternes. No entanto, a praça é um ponto estratégico para quem pretenda conhecer a cidade que existe além do óbvio. De um lado, a avenue de Ternes e o charme discreto da burguesia, gente que vai à feira, mas leva seus cachorros adornados com bandanas coloridas. Na direção oposta, a rue du Faubourg Saint-Honoré e suas referências mundialmente conhecidas: as lojas de instrumentos musicais, a Salle Pleyel, o hotel Le Bristol, a Hermés. Depois que as portas do comércio se fecham, chegam os clientes da noite, não para comprar, mas para dormir, abrigados sob os portais do luxo. Emblematicamente, o Palácio do Governo dá as costas para o Faubourg.
Dobrando na avenue Hoche, chega-se a um dos endereços mais requintados e menos comentados do pedaço: a avenue Van-Dyck, que termina junto ao imponente portão do Parc Monceau. Obra-prima de paisagismo, o parque é rodeado por mansões da “belle époque” e povoado por legiões de adoradores do próprio corpo, que correm desabalados pelas alamedas e ameaçam atropelar os velhinhos que cruzam seu caminho à procura do sol.
Talvez você ache mais prudente sair da trajetória e retornar à Place de Ternes, mesmo porque depois da caminhada você deve estar com fome. Então você chega à brasserie “La Lorraine”, que abre às sete da manhã e só fecha de madrugada. Logo na entrada você depara com um grande aquário, onde o seu próximo almoço (ou jantar) nada alegremente, sem noção do que o aguarda.
A casa é famosa pelos tesouros resgatados do Mediterrâneo, do Báltico, do Atlântico Norte, quem sabe, até das águas arrepiantes do Ártico. Enquanto você espera prepararem sua mesa com uma flute de champagne nas mãos, feche os olhos e procure escutar o barulho das ondas.
La Blonde e eu escolhemos o “La Lorraine” para jantar na primeira noite de reveillon que passamos juntos em Paris. Eu, hóspede contumaz dos hotéis da Rive Gauche, não conhecia o lugar, mas ela tinha belas lembranças de lá, inclusive de ceias de natal festejadas com os pais e irmãs na juventude. A escolha foi perfeita. Comemos e bebemos muito bem, em clima de festa civilizada e saímos a tempo de nos juntarmos à turba ululante na contagem regressiva em torno do Arco.
Voltamos lá outras vezes, inclusive com filha, genro e uma neta deslumbrada com a neve que caía lá fora. No retorno mais recente éramos só nós dois, numa noite de outono. Como sempre, o magnífico salão, recentemente restaurado, estava cheio de gente com fome de viver. Como sempre, o aquário exibia tentações e parecia esperar a vingança de Moby Dick. Mesmo com reserva feita de véspera, tivemos que aguardar alguns minutos no bar, mas doce é a espera quando você se entretém com uma taça borbulhante de Pommery Brut e o exame atento do menu.
Enfim conduzidos à mesa, sentamos ao lado de um jovem casal sueco, com todo jeito de quem já posou para folhetos sobre as atrações da Escandinávia. Diante de ambos, uma travessa de lagostins. La Blonde e eu, em sincronia cúmplice, evocamos uma daquelas cenas de filme que jamais se apagam da memória. Burt Lancaster, já no fim do percurso como personagem e como ele próprio, preparando com elegância e precisão esse mesmo prato. Um patriarca em sua dignidade, fisicamente próximo, mas a anos-luz de distância existencial da grande família que espalhava irrelevâncias pela casa de praia. O próprio Rochedo de Gibraltar.
Quem enfuna as velas com Pommery não comete o sacrilégio de mudar no meio da travessia. Assim, a escolha dos sólidos submeteu-se ao comando do líquido. Começamos com ostras irrepreensíveis (praires, de fornecedor exclusivo) e, como contraponto ao champagne, pequenos goles de água Evian.
Na seqüência, talvez em homenagem silenciosa aos nórdicos da mesa ao lado, La Blonde comandou um haddock, de onde se desprendia uma fumaça perfumada que parecia encobrir barcos vikings se esgueirando entre geleiras.
Eu me senti rudemente prosaico diante das ainda que perfeitas noisettes d’agneau, meu primeiro experimento em coisas da terra firme, depois de tantas incursões às profundezas de La Lorraine. Da próxima vez, juro que volto à sensação de caminhar sobre as águas. Sobremesas constituiriam um excesso. Café e licor encerraram a saga.
De volta ao frescor da noite, a banca ainda aberta do florista português convocava a uma parada obrigatória em meio ao silencio da Place de Ternes.
N.R – Eu gosto tanto dos textos do Dodô (sim, ele é o Evandro) que transformei um plano em realidade: colocar fotos num deles.
É uma heresia? Talvez, mas como ele permitiu, nós fomos na brasserie na noite do dia 03/05/12, logo após este fantástico dia e o resultado está aí em cima.
Espero, sinceramente, que o casal mais classudo da Internet (ele e a Beth, la Blondie) encare como uma grande homenagem.
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Edu, concordar é pouco; estou é emocionado com a homenagem! O retrogosto do que bebemos e comemos no La Lorraine reapareceu glorioso, a chamado das sua magníficas fotos. E o casal La Blonde-Dodô declara-se ruborizado diante da internet pelo elogio mais do que generoso.
Muito merci e um abração.
Eu por ironia do destino moro logo ao lado de tudo isso, na verdade moro na av hoche. E posso estar super stressado ou triste na volta pra casa, que quando saio do metro e vejo tudo isso, ou pego a bicicleta pra ir ao mercado, tudo muda. =)
Douglas, que privilégio!!!!
Dodo e Beth: repetimos (uma deliciosa brincadeira) até mesmo os pratos para a homenagem. Pratos generosos. Beth, voce é boa de garfo! (rs)
Lindo post.
Bela homenagem !
Belas fotos para um texto genial. Muito justa a homenagem.
Queridos Edu e Eymard
Vcs me deixaram emocionada…
Adoro aquela regi~ao, que significa muito para mim…
Natal e Reveion com meus pais e irmãs e muitos retornos ao longo da vida…
Eymard, vcs pedediram os mesmos pratos que nós, rsrsrsr
Amei a foto do quiosque de flores…
Vcs só esqueceram da vista do Arco lá no começo da Wagram!
Um beijo cerinhoso.
Beth
Grande Dodô, nós é que ficamos envaidecidos por ter um texto teu e um casal tão bacana por aqui. Merci digo eu!!
Douglas, isto é que ser afortunado!
Marcia e Vianney, homenageados fomos nós!
Mirella, uma pena não termos “comido” outros textos do mestre Dodô.
Beth, a idéia era justamente essa. Pedir os mesmo pratos e agir como se vocês estivessem lá. Espero que pelo menos tenham ficado com as orelhas vermelhas! 🙂
Abas mareados pra vocês.